sexta-feira, 4 de junho de 2010
TRÊS CRÔNICAS - Em português
Três das crônicas de CIUDAD DE PAPEL, em versão portuguesa.
O CISNE NEGRO DE MARINGÁ
RUA CAULAINCOURT
CRÔNICA DE BUENOS AIRES: VIAGEM À CIDADE ÍNTIMA
O CISNE NEGRO DE MARINGÁ
Fui a Maringá para falar de Baudelaire. Maringá está a caminho do coração da América do Sul e, para mim, esta viagem era para adentrar o continente, direto. Como a cidade de São Paulo, Maringá também está sobre o Trópico de Capricórnio. Acompanhando o Trópico, e depois de muitas horas, o Estado de São Paulo termina, o mapa é enganoso, e a gente está no Norte do Paraná, muito longe da capital, Curitiba, porém bem mais perto do Mato Grosso. Continuando o caminho sobre o Trópico, vão surgir o extremo norte do Paraguai, as fronteiras da Argentina com a Bolívia e até o deserto de Atacama no Chile. Mas eu fiquei em Maringá, para falar de Baudelaire.
Meu tema, resumindo, era o fracasso da crítica a partir de um soneto de As Flores do Mal, aquele “À une passante”. Ia fazer um levantamento crítico do poema como documento daquela Paris que mudava sob o Segundo Império, a novidade do anonimato nas ruas. O enigma da transeunte desse poema incluía a leitura psicanalítica e eu me aventurava no sado-masoquismo baudelairiano, o da “da dor que fascina e o prazer que mata”. As citações de Michel Foucault, tão exatas, não podiam faltar, nem Walter Benjamin, nem o mistério implícito no poema que, no fundo (e em parte da forma), era o tema da minha conferência.
Maringá tem 294.380 habitantes. Como ela é a capital de uma região, e está cercada de cidades-dormitórios, todo o aglomerado urbano conta com meio milhão de habitantes. Por isso sua universidade, a UEM, essa “Universidade Estadual de Maringá” é grande e um dos orgulhos locais. A cidade tem razões para ser orgulhosa de si mesma. Um de seus orgulhos é a natureza, tão integrada ao mapa urbano que, às vezes, a gente duvida se está realmente em uma “cidade”. Vêem-se poucas ruas, e muitas avenidas largas, com árvores gigantescas, no meio delas e ao lado, palmeiras imperiais, jacarandás, ipês, essas árvores que ao invés de folhas verdes estão coberta de flores. Há aquelas de flores lilases e as amarelas. E além disso, há vários parques em pleno centro da cidade. Os quatis e os macaquinhos saem dos parques e lhes é dado o direito de passear entre as árvores das calçadas, pelos jardins e quintais das casas vizinhas. O calor é abrasador durante o dia, durante a noite ameniza um pouco, talvez porque a cidade está a 554 metros de altura, e da cama de hotel onde eu estava hospedado, descobri que os pássaros que eu via chegar, de manhã, do leste, de Mato Grosso, eram os mesmos que retornavam ao fim do dia, voando num desenho perfeito, sob um céu atordoado de todas as variações do rosa, do vermelho e do violeta chegando perto do negro.
Os maringaenses são falantes, gostam de conversar, “prosear”, dizem eles. Não “prosear” com as pessoas seria quase uma ofensa, ou coisa de um forasteiro irremediável. Eles gostam de contar que Maringá quase não tem passado. A cidade foi fundada em 10 de maio de 1947. Era uma selva virgem e, primeiramente, os ingleses, da “Paraná Plantations Company”, a partir dos anos 20, desbravaram florestas, e em seguida, a tarefa foi continuada pela “Companhia Melhoramentos do Norte do Paraná”, a partir de 1939. Aquela terra vermelha como o fogo (“podzólico roxo”, disseram-me) era boa para o cultivo do café. Falam com orgulho dos “pioneiros”, que vieram de São Paulo e de Minas Gerais. Vinham para trabalhar. Hoje fazem monumentos e memoriais para eles. A atriz Sônia Braga, Dona Flor, talvez seja a maringaense mais famosa, mas falam pouco dela. Vê-se que preferem a história dos pioneiros. Gostam de terem sido imigrantes pobres, “retirantes”, e, com muito esforço, terem se tornado a Cidade Canção, ou a Cidade Verde.
O verde se explica evidentemente. Mas o epíteto Canção obriga-os a interromper a “prosa” para cantar a canção “Maringá” – tristíssima – que deu seu nome à cidade. Conta a história de outra imigrante, esta mítica, que se chamava Maria do Ingá, vinda da Paraíba devido à uma seca, já transformada em “Maringá”: “Foi numa leva/ Que a cabocla Maringá/ Ficou sendo a retirante/ Que mais dava o que falar”. O autor da letra é Joubert de Carvalho, compositor conhecido na época e a canção seria de 1935. Nessa altura os mitos se bifurcam em versões diferentes. Alguns dizem que um “pioneiro” viúvo cantava tristemente essa canção para ninar seu filho numa rede. Mas todos concordam que desde a época dos ingleses, cada córrego, cada clareira que encontravam, sem sabem que nome lhes dar, os peões inventavam um nome, quase sempre em guarani, ou os batizavam com o nome de alguma mulher ou de outra coisa preciosa: marcas de cigarro (o caso do córrego do “Fulgor”). Em todo caso, a região que seria Maringá, levou o nome mais belo.
Ninguém estava proseando comigo quando vi o cisne negro no lago de um parque central. Fui eu mesmo que procurei alguém para compartilhar o impacto de tanta elegância, a beleza de cortar a respiração, esse cisne infinito. Para prosear havia apenas um guarda, um senhor já entrado em anos (63, me disse depois, porque também me contou sua vida, prosa vai, prosa vem, com faz parte). O cisne era viúvo. Depois da morte da “cisna”, colocaram-no ao lado de outras cisnas, também negras e belas (eu as vi em outra parte do lago) e ele as recusou. A “prosa” incluía partes moralizantes, porque, dizia o senhor, os homens esquecemos a quem amamos, mas “ele”, esse cisne do qual ele cuida há anos, não. Dizia isso com a admiração implícita pelo seu amigo cisne.
A história de fidelidade, num cisne, não me surpreendeu tanto quanto a beleza desse animal, mítica e comovedoramente real. Eu estava em Maringá para falar de um soneto das Flores do Mal nas Jornadas de Estudos Franceses da UEM. Então, de onde vinha esse cisne negro que não era de Rubén Darío? De Baudelaire, era claro. Me vinha de Baudelaire.
“O Cisne” (“Le Cygne”) de Baudelaire é trágico, e o poema talvez seja um dos mais desolados dos “Tableaux Parisiens”, os Quadros Parisienses, e mesmo de todo o conjunto das Flores. É dedicado “A Victor Hugo”, o poeta na época exilado na ilha inglesa de Guernesey. Eu fui a Maringá para falar de uma transeunte e quem passava na minha frente era o cisne. Fui a uma cidade cujo único passado é a natureza, sem tempo, e me aparecia esse antigo cisne negro, que em Baudelaire é branco e sujo (“Baignait nerveusement ses ailes dans la poudre”, procurava a água e se banhava no pó), perdido, aquele, em uma cidade em obras e que “muda” (“Paris change!”), e o cisne mártir da modernidade me aparecia agora viúvo e negro, em um lago do coração da América do Sul.
É verdade, o Poeta o anunciava desde a segunda estrofe: “la forme d’une ville/ Change plus vite, hélas! que le coeur d’un mortel”. A prova de que a forma de uma cidade muda mais rápido que o coração de um mortal era a própria Maringá, sua existência, as fotos que se vêem nos Memoriais da cidade e o relato das “prosas” maringaenses. Da selva virgem pode surgir uma cidade.
No poema, o Poeta “pensa”. Pensa e proseia. “Je pense”, repete, e vai enumerando os desamparados do passado, os que o perderam irremediavelmente. A lista final é vasta. Passam Andrômaca, já viúva (“Andromaque, je pense à vous!”), o cisne, em busca de seu lago, que o poeta viu uma manhã (como eu, pobre de mim!), a negra tísica que busca as palmeiras africanas “Derrière la muraille immense du brouillard”, atrás dessa muralha de névoa urbana (e esta estrofe sempre me comovera: não se lê Baudelaire na América do Sul do mesmo modo que em Paris). Passam também pelo pensamento os perdedores daquilo que não se poderá encontrar nunca mais (“A quiconque a perdu ce qui ne se retrouve/ Jamais, jamais!), passam marinheiros esquecidos em um ilha, os presos, os vencidos. E se ouve, e estremece, a Recordação, na “floresta” da alma, escrito com essa maiúscula tão definitiva, ao som de trombeta: “Un vieux Souvenir sonne à plein souffle du cor!”)
O cisne negro de Maringá chegava, viúvo e fiel. Em Baudelaire era “Comme les exilés, ridicule et sublime”, ridículo e sublime como um exilado. Mas eu o reencontrava na América do Sul, na terra mestiça para onde também imigraram Maria do Ingá e milhares, milhões de homens, tantos que os exilados deixaram de ser ridículos. Meu cisne era sublime, certamente, porque, viúvo e junto à Recordação, voltava redimido do exílio para inaugurar um mundo novo. De noite fui prosear sobre a transeunte do Segundo Império diante de um auditório de jovens entusiastas que estudam Baudelaire no coração do Continente. Não mencionei “O Cisne”. Em Maringá, não era necessário.
RUA CAULAINCOURT
Domingo de manhã. Desci em Batignolles para comer alguma coisa no bar de Jacky, mas é domingo e está fechado. Continuo andando até a praça Clichy, pode ser que encontre algum local aberto, depois subirei a rua Caulaincourt até a casa de Jean-Francis. O apartamento de Jean-Francis é triste e bonito, numa ruela sem saída perto do metrô Lamarck-Caulaincourt. O problema é subir a rua Caulaincourt, que é curva, íngreme e parece não terminar nunca, como nos pesadelos.
É claro que tudo iria estar fechado na praça, eu devia ter previsto, considerando minha sorte. Sento um momento na calçada, porque esta praça não tem bancos, é só um corredor urbano, desertado neste horário. Olho para o bulevar Clichy, as portas fechadas da livraria onde Jean-Francis trabalhou vários anos e que nos bons tempos ficava aberta até muito tarde à noite. Perto dali está a joalheria La Turquoise, onde os travestis brasileiros levam os cheques. Muitos clientes pagam com cheque e eles não têm documentos, não podem abrir uma conta bancária para fazer os depósitos. A dona do La Turquoise, Madame Bordelais, por pura gentileza, e enquanto isto não comprometa a sua declaração de imposto de renda, deposita os cheques na sua própria conta e dá o dinheiro a eles. É um favor muito uruguaio, se é que eu posso dizer assim, sentado na frente da praça Clichy, pensando nas dificuldades dos travestis brasileiros. Um favor à uruguaia é o que eu precisaria agora, alguém que me levasse até a casa do Jean-Francis. Sou jovem ainda, é verdade, tenho trinta e poucos anos. Mas hoje dormi pouco, sinto frio, tenho o estômago vazio e pouca sorte.
No meio da praça levanta-se o monumento ao marechal Moncey, aquele que defendeu Paris, no fim do império napoleônico, contra a invasão russa. Penso que os travestis estão aqui para juntar dinheiro, e também sonham com aristocratas russos (mas podem ser ingleses) que se apaixonam por eles. Às vezes conseguem o primeiro e voltam ao Brasil com dinheiro para comprar pelo menos um apartamento. Eu não tenho nenhum projeto desses. Mas desde 1978 venho aproximadamente cada dois anos. Esta média durará até meados da década dos anos 80. Venho porque pertenço a uma outra tribo errante, a dos exilados. Venho para encontrar meus amigos uruguaios, para saber notícias, deles, de mim mesmo.
Junto minhas forças e me levanto da calçada na frente deste praça deserta. A praça Clichy num domingo cinza de manhã no inverno: um bom resumo do desamor. Esse é meu sentimento por Paris nesta época. As moças que passam apressadas trabalham em Pigalle, na praça Blanche, ou em Rochechouart, já é sabido. Os outros passantes são turistas que vão à basílica do Sacré-Coeur, essa igreja mais feia do que a praça Clichy, ou vão comprar lembranças com os pintores em série da praça du Tertre. A praça Clichy nos domingos de manhã não existe, ou se confunde no cinza permanente do exílio.
Começo a subir a ladeira da rua Caulaincourt. Eu não olho nada, ou sim, olho para a calçada e para as árvores, enormes. Estas, os franceses as chamam sophoras. Penso nas calçadas quebradas de Montevidéu e nas árvores que lá chamamos paraísos, eu subia nelas em criança. Venho a Paris também para ter notícias de Montevidéu. Moro em São Paulo, sou professor da Aliança Francesa local, venho a Paris porque tenho a casa de Jean onde me instalo como ele se instala na minha em São Paulo. As notícias do meu Montevidéu impossível são o ar, às vezes rarefeito, que respiro durante muitos anos.
Por isso preciso dos meus amigos, sobretudo da minha Trindade Non Sancta, Juan, Jean, Adalberto. Juan Introini, meu amigo desde a adolescência. É professor de Latim na Faculdade de Humanidades. Tantos anos de estudo, tanto talento, ele e Jorge Cuinat, e um dia foram dispensados da Universidade. Não eram confiáveis. Um professor categoria A deve tê-los substituído. Porque há cidadãos A, cidadãos B e cidadãos C. Quando eu fui expulso do Uruguai essa divisão em categorias ainda não existia, ou não tinha um nome, essas três letras. Eu fui para São Paulo em silêncio, que ninguém percebesse, meu exílio foi sem nenhuma categoria. Dos meus vários delitos creio que o pior consistia em ser amigo de um preso político, o pobre Nelson Marra. Em ir à cadeia de Punta Carretas todos os sábados, infalível. A fidelidade não se perdoa. Ser um homem honesto, praticar a amizade, a solidariedade, isso não se perdoa numa ditadura. Há sempre um consenso implícito nas ditaduras, a idéia de um mal menor, um espaço sem valores onde medram os oportunistas. Também por isso a ditadura é terrível, e não só por ser um regime “de força”. Penso na demolição do Instituto de Professores, o IPA, não posso evitar.
Paro um minuto para recuperar forças, estou na ponte da rua Caulaincourt sobre o cemitério Montmartre. Gosto deste cemitério. Mas eu gosto de todos os de Paris. Nos anos 70 e nos primeiros 80 os cemitérios são a única coisa que eu amo nesta cidade. Prometo a mim mesmo vir num desses dias visitar os túmulos dos meus mortos queridos do Montmartre: Alfred de Vigny, Stendhal, Berlioz, Théophile Gautier, os irmãos Goncourt, Vaslav Nijinsky e, por que não, Émile Zola. O périplo não será pequeno. E no cemitério Montmartre é preciso cuidar dos gatos, pelo menos dar a eles de comer, ou dar-lhes calor, para conjurar a má sorte.
Venho a Paris com teimosia para passar os três meses das minhas férias escolares brasileiras, isto é, sempre no inverno europeu, para encontrar o calor dos amigos, as conversas, a esperança. Percorro sempre meu périplo dos “Refugiados Políticos” –assim figura nos documentos deles. Venho ver meus uruguaios de Grigny-La Grande Borne. Mas também estão os da Porte des Lilas, os que estudam e moram perto da rua des Écoles. São tantos. Eu preciso de todos.
Justamente agora de manhã estou chegando de Grigny. É uma periferia, longe. Rimos: bem que podia chamar-se A Borne Perdida. Tinha um jantar ontem à noite na casa de Jean Stern, um militante gay francês. Éramos dois convidados, um militante holandês e eu. Mas eu quero ficar em Grigny, ligo para Stern, não posso ir, nunca chegaria na rua de Turenne, estou preso num engarrafamento, em Grigny. Stern já entendeu tudo. Não posso e não quero deixar meus amigos, ele sabe disso. Depois eu conhecerei o holandês, ele e eu escreveremos alguma nota para a revista Gai Pied. Mas agora minha urgência são os uruguaios.
Acabei por dormir em La Grande Borne, acordei cedo, tomei um chimarrão amanhecido e voltei de trem à Gare de Lyon agora de manhã. O que fazem os uruguaios quando se reúnem em Grigny, a pobre, ou na rua des Écoles, mais rica, ou pelo menos mais intelectual? Bebem vinho, recordam. Alguns fazem projetos. Eu recomponho o corpo morto que nos une. Chama-se Uruguai, é imenso. É gigante aquilo que nos aconteceu, é gigante a perda. Faz anos que nos reencontramos e sempre voltamos a essa perplexidade, nos juntamos para contemplá-la, para medi-la, é uma ausência falada. Contamo-nos histórias.
Não sabiam a história de Gustavo M.? Sabiam, voltamos a contar para nós mesmos. Fora a Cuba fazer treinamento de guerrilha. Teve algumas crises nervosas, o internaram. No fim a direção da guerrilha desistiu dele. Mandaram-no a Varsóvia, que fizesse o que ele quisesse. Dali ele veio de trem para Paris. Eu o vejo mais uma vez. Somos jovens, muito jovens. Foi em 1978, ele liga para mim, está em Asnières, um subúrbio, quer morrer. Passo todo o mês de janeiro com ele em Asnières. Anos depois ele me contará. Não se matou porque minha presença devolveu algum sentido à vida. “E isso é bom?”, perguntei. Não acusa recibo da minha graça, garante que sim. Sei que vivo para meus uruguaios, para que não passemos o limite, para recordá-lo: estamos na frente do abismo.
Na rua Caulaincourt, depois da curva maior, há uma pracinha. Chama-se Place Constantin Pecqueur, é perto da casa de Jean. Não sei quem pode ter sido Constantin Pecqueur, mas quem fez a praça teve piedade dos pedestres, encheu-a de sophoras. Paris também tem seus oásis.
Penso na vida cotidiana dos uruguaios exilados. Os de Grigny têm filhos. As crianças falam mal o espanhol, têm dificuldades. Moram em prédios enormes, blocos sem identidade. Ali moram uruguaios, argentinos, chilenos, brasileiros, vietnamitas, muitos africanos tanto da África equatorial quanto do Magreb.
Estou quase chegando. Atravesso o quarteirão com os estúdios da Pathé, a companhia de cinema que criou mundos cosmopolitas, lendas de araque. Hoje esses estúdios estão desativados, devem hospedar só fantasmas. Jean-Francis é seu vizinho.
Ele dorme quando eu chego. Preparo o café e minhas lembranças. Penso em Juan e nele, meus “dois Juanes”. Jean-Francis Aymonier é meu apoio, meu porto seguro, há tantos anos, desde março de 1977, ele diria, porque ele é muito preciso com datas. Tinha ido a São Paulo para se casar, vejo os dois noivos chegando de táxi para me pegar na biblioteca da Aliança Francesa. O porteiro me liga, preciso descer correndo, intimado a subir no táxi. Consigo entrar entre o buquê de flores, a cauda do vestido da noiva, Jean radiante dentro do terno mandado fazer para a ocasião. O casamento poderá não durar muito tempo, mas virão outros amores, em São Paulo ou em Paris, atravessaremos a vida juntos, indiferentes às mudanças de hemisfério. Jean, que não fala espanhol, o mais uruguaio dos franceses, irá a Montevidéu, ficará na casa de Graciela Míguez e de Juan Introini, trará notícias, será amigo dos meus amigos.
Muitos anos depois –dia 17 de maio de 2000, ele me lembraria- terá que passar por sua foram de exílio, o acidente na rua. Jean, corretor de um jornal em Paris, está chegando de moto ao local de trabalho, o azar, com capacete e tudo, o golpe na nuca contra o meio-fio. Jean tetraplégico. Jean o forte. Durante algum tempo ele está tentado pela morte, quer morrer, me pede. Diz: “Me mata”. Me contagia o desalento, chego a pensar seriamente nesse pedido final. Mas o espírito volta, a vontade de viver apesar de tudo. Trinta anos depois, Jean e eu continuamos conversando, às vezes em silêncio, ou pendurados a esse telefone de internet com o qual chama, durante horas nos fins de semana.
Os amigos dos uruguaios se “uruguaízam” também, e todos nos contamos histórias para sobreviver. Precisamos delas. Durante anos Roque e Esther Seixas, meus amigos gaúchos, voltaram ao Brasil depois de décadas em Montevidéu, me ligam de Rio Grande. Falamos dos presos. Custa-nos falar dos desaparecidos. Margarita está desaparecida, foi em Buenos Aires. Os três sabemos disso. Mas necessitamos o relato salvador. Alguém em Montevidéu disse que Margarita casou-se com um violoncelista búlgaro da sinfônica de Buenos Aires. Que teve filhos. Repetimos esse relato para nós mesmos, nos aferramos nele, não dizemos que provavelmente ela está morta. Chego em Paris e conto: Margarita está casada, vive, tem filhos em Buenos Aires.
Sim, diz Daniel, o uruguaio da Porte des Lilás, ele soube. Esther escreveu do Brasil a Roberto em Grigny. Daniel casou-se com Beatriz a argentina. A polícia a procurava, era em 1977. Acharam a irmã dela, na saída de um metrô. Mataram-na porque a confundiram com Beatriz. Alguém consegue avisar a Beatriz. Que fosse embora, para onde pudesse. Um comissário da ONU a recebe na madrugada, consegue embarcá-la a Paris. Carregará a culpa de uma irmã morta no lugar dela. Esther me liga de Rio Grande, soube que Daniel casou-se com uma argentina, é refugiada, terão um filho. Salvaram a vida, repete Esther.
Adalberto, meu amigo de Ribeirão Preto, que um dia morará em Maringá, prepara o mestrado em Paris. Antes de viajar, em 1980, Adalberto de Oliveira Souza vai a Assunção, no Paraguai. Leva livros meus para Josefina Plá, volta com fotos e lembranças de Josefina, incluídos seus últimos livros de poesia. Essas fotos de Josefina serão das poucas imagens suas que se salvarão, são um documento, Josefina entre seus gatos. Eu as farei publicar anos depois, em 2003, em certo livro-homenagem que dedicará à sua memória a prefeitura do seu local natal, La Oliva, Fuerteventura, nas Canárias. De Assunção Adalberto desce a Buenos Aires, de trem. De Buenos Aires também voltará com notícias dos pais de G., aquele que tinha abandonado a vida religiosa, coisas de rapazes novos, e tinha ido morar no Brasil sem dar explicações, em São Paulo primeiro, depois no Recife. Adalberto segue para Montevidéu, estará com Juan Introini, fará o informe da situação. Ele repetirá essas informações em Paris. Adalberto, o amigo do Alfredo, como Jean, incorporados na espera dos exilados uruguaios.
Mesmo Ivo, meu amigo tcheco, circulará na órbita dos uruguaios e do exílio. Ivo era o contraponto necessário dos exílios uruguaios, era o homem preso em outro dos pesadelos do século XX. Católico e físico nuclear, Ivo tinha vinte anos na primavera de Praga, apoiou o Alexander Dubček, atirou pedras contra os tanques russos, chorou a derrota, viveu aquilo como um estupro.
Somos amigos desde 1978, quando vou a Roma passar janeiro com Juan Introini, na pensão de estudantes do Trastévere. Despedido da Universidade, Juan recebe do governo italiano uma bolsa para aperfeiçoar seus estudos clássicos. Um dos estudantes é Ivo, um tcheco que faz estudos em física nuclear. Sou novo na Europa, quero conhecer o mundo, Juan adoece durante meus dias romanos –as alergias de Juan, o fígado. Ivo me diz no seu melhor italiano: Eu levarei você a passear por Roma.
E me levou, literalmente. Porque para Ivo atravessar Roma inteira era fazer “uma piccola passegiata”. Tínhamos a mesma idade –ambos nascêramos em agosto de 1948 –mas as forças de Ivo eram de outro mundo, para mim pelo menos. Nos primeiros dias falamos muito da ditadura uruguaia, da qual ele tinha notícias por Juan. Além disso, ele tinha descoberto que seus conhecimentos de italiano lhe permitiam entender muitas frases completas em espanhol. Aos poucos, porém, o centro das nossas conversas vai se deslocando. Ivo não consegue calar, conta os acontecimentos de 1968 na Tchecoslováquia, a ditadura. Acha desesperante que pessoas de esquerda em ocidente não possam entender o crime que está ocorrendo no seu país, em todo o bloco socialista.
Eu tentarei dar voz ao protesto dele em alguns poemas, poucos, demasiado poucos, sobre a invasão. Falarei com todos meus amigos, levarei o tema aos Refugiados de Paris, do mesmo jeito que o levarei depois a Montevidéu. Eu vou dos meus exilados uruguaios até meu “ilhado” tcheco nos Cárpatos eslovacos, onde ele dá suas aulas. Aprendi que se ouvir ajuda a sobreviver, a aliviar as feridas da história.
No fim do seu período de especialização Ivo tenta prolongar seus estudos em Roma, mas a autorização é negada pelo governo do seu país e volta à Eslováquia, de onde já não poderá sair. O único modo de a gente se ver consistirá em que eu vá, para mim é fácil obter o visto das autoridades tchecas. Com um detalhe: preciso apresentar-me “perante às autoridades policias durante as primeiras 48 horas da estadia no território checo”, avisam em francês os vistos concedidos. As “piccole passsegiate”, enormes, serão agora em Praga, nos Cárpatos, em Bratislava. E continuaremos contando a nós mesmos histórias de resistência às ditaduras, no plural. Eu sei que Ivo me leva às igrejas barrocas ou medievais e aproveita para rezar. Sem mim não seria possível. Se o fizesse sem uma desculpa turística poderia ser demitido da universidade. “Mas pelo menos aqui você não morrerá de fome, como no ocidente”, eu lembro a ele. Não, mas será humilhado, será mandado por exemplo de zelador em algum prédio, e ele quer estudar.
De Paris irei em duas ocasiões a Tchecoslováquia, em 1982 e em 1985. O “socialismo real” deixará de existir poucos anos depois, mas nos 80 não suspeitamos esse fim. Ivo espera por mim fielmente na outra ponta das dezenove horas de trem de Praga. Jean e Juan me deixam na Gare de l´Est, Ivo me pega em Praga-Centro dia seguinte. No meio há uma fronteira com arames farpados e soldados, chamava-se “cortina de ferro”. Nos 80 também ignorávamos que viriam fronteiras piores.
Em Bratislava, na última noite, era janeiro de 1985, Ivo não se contém. Num restaurante elegante, freqüentado pela nomenclatura local e que eu posso pagar porque cambiei francos franceses no mercado negro –é numa torre futurista sobre o Danúbio, e o local parece girar- Ivo chora. Não sei como reagir, não sei como se consola alguém tão enérgico e cheio de fé como Ivo. Somos dois loucos indignados, choramos as ditaduras, não nascemos para aceita-las.
De Bratislava volto a Praga no trem noturno, para seguir a Paris. É a primeira vez que estou sem Ivo em Praga. Passo na casa de Pavel e Klara, dois de seus amigos que eu aprendi a querer. No café Europa, sobre a praça Venceslau, onde o regime tolera uma mínima vida gay, escrevo a Ivo um cartão postal, que mando aberto para que chegue. Mas ele vai escrito em italiano. Meu cartão não chegará nunca. Ivo sabe o que escrevi nele.
Mas naquele janeiro de 1985 são mais alegres os fins de semana com os uruguaios, até mesmo os almoços cotidianos com Adalberto nos restaurantes universitários da rua de Cîteaux, ou de Jean Calvin. Festejamos a volta da democracia. Eu tenho ainda algumas apreensões, mas se sente a felicidade no ar. Pesa menos a subida da rua Caulaincourt. Juan Introini passa o mês em Paris. Já escreveu a maior parte dos contos que integrarão seu livro El intruso. Eu conhecia alguns deles, agora leio o conjunto, é estupendo.
Jorge Cuinat está morando em Paris, tem uma bolsa da universidade venezuelana onde trabalha. Estuda Cícero. Morrerá em agosto do ano seguinte, no dia do seu aniversário. Os problemas cardíacos, o exílio para complicar esses problemas. Mas durante o mês de janeiro estamos todos juntos em Paris, Juan Introini, Adalberto, Jean-Francis, isto é, a Trindade Non Sancta, e Jorge Cuinat, e todos os uruguaios. Quase todos se preparam para voltar.
Uma noite Jorge vem me buscar na rua Caulaincourt, quer que passemos a noite na casa dele, perto da praça d´Italie, já comprou o whisky. Será nossa despedida. Juan já voltou para Montevidéu, eu voltaria a São Paulo dois dias depois, e já não mais veria o Jorge. Uma parte dele sabe disso, daí essa despedida, regada a álcool, e devidamente autorizada pelo médico. Revisamos nossa adolescência no bairro do Reduto, a rua Marsella, onde ambos tínhamos vivido –Introini morava perto, em Marcelino Sosa-, os companheiros do IPA, sempre o IPA tão amado, os de Humanidades, cada um deles, e cada ano, antes e depois do exílio. Jorge fala, eu sei que precisa disso, que é preciso que lembre e que fale porque depois já não mais haverá tempo. Não voltará vivo a Montevidéu. Espera por ele uma operação no hospital Pitié-Salpêtrière, e alguns meses de vida, fora do país.
Nesse mês de Janeiro, o mais leve dos meus invernos em Paris, vamos a exposições com Jorge e as pessoas da minha Trindade. Visitar o museu Rodin, de que Jorge gosta tanto, passar uma tarde em Versalhes, assistir a um Tristão e Isolda de Wagner na Ópera, e porque Jean havia comprado o ingresso meses antes, e eu entro com seu documento de identidade. Vamos a teatros, um Tchékov pela Comédie-Française em Saint-Denis, tomamos champanha oferecida por Jacky no seu bistrô da avenida de Clichy porque esse ano eu levei do Brasil as bandeirinhas dos times de futebol, de São Paulo e do Rio que ele expõe com orgulho no café. É o ano que passamos uma semana inesquecível na casa de campo de Jennifer, a mãe inglesa de Jean, na Normandia. Percorremos as praias, de Honfleur até Cabourg, reaprendemos a felicidade. Com Jean faremos uma escapada de alguns dias na Itália, aonde eu não ia desde os tempos de Juan Introini em Roma.
Tomo consciência que eu nunca tinha passeado pela rua de Rivoli, ou pela praça Vendôme, como se em Paris eu só passasse e com pressa. Fui por muito tempo o homem que subia a rua Caulaincourt como se carregasse um mundo nas minhas costas, percorro bairros suburbanos, demoro em conhecer ou em apreciar os lugares celebrados, ao menos com essa alegria sem regras nem compromissos que também é um direito. Em Montevidéu foi a mesma coisa. Muito tempo eu quase só conhecia a rua Minas onde nasci e a rua Marsella onde morei tantos anos. Demorarei em conhecer o centro. Tudo demora na minha vida. Por isso me deslumbra estudar Literatura, porque descubro o mundo, que estava escondido para mim. Sou e serei sempre o rapaz criado em um bairro, assombrado no café Sorocabana, alguém que precisa ouvir e aprender.
Neste janeiro ou fevereiro de 1985 tomo café com Jorge na rua Soufflot, e uma tarde decidimos parecer dois turistas. Adalberto se junta a nós, fala um espanhol estranho mas não quer ser identificado pelos reais turistas brasileiros que enchem o café na frente do jardim de Luxembourg. Rimos. A frase em espanhol de Adalberto: “Estamos felices hoy”, com destaque para o “hoy”, passará a nosso folclore parisiense, com Juan Introini a repetimos até hoje. Por cautela, seguramente.
Escrevo estas lembranças nos anos 2000, quando não está especialmente no meu horizonte viajar a Paris, Jean não mais mora na rua Caulaincourt, a própria Tchecoslováquia já nem existe mais, os travestis brasileiros parecem ter trocado Paris por Milão ou Barcelona e os exilados estão todos de volta no Uruguai, ou pelo menos voltam ao Uruguai com a freqüência que desejam. Eu continuo sem saber quem foi Constantin Pecqueur, mas confesso que me sentaria uma última vez na pracinha depois da curva grande da rua Caulaincourt, sob os sophoras, e olharia aliviado as calçadas que descem para o cemitério, Clichy e a estátua longínqua de Moncey.
CRÔNICA DE BUENOS AIRES:
VIAGEM À CIDADE ÍNTIMA
No inverno de 1944 Cecília Meireles (1901-1964) realizou uma viagem pelas duas capitais vizinhas do Rio da Prata: Montevidéu e Buenos Aires. Dessa temporada platina a poeta deixou uma série de crônicas que foram publicadas nos jornais do Rio de Janeiro A Manhã e Folha Carioca. Naqueles textos (reeditados em 1998 pela editora Nova Fronteira do Rio sob o título Crônicas de viagem, volume 1) fica patente que Cecília amou Montevidéu: ela diz isso explicitamente, descreve a cidade com um carinho profundo e, ao deixar a capital uruguaia para ir a Buenos Aires, despede-se assim: “Quero dizer-te adeus, e não posso, Montevidéu – pois até o olhar dos teus cavalos me está prendendo a ti. Mas se eu ficar, talvez nunca mais os veja, porque o ofício humano é triste, e facilmente se vicia: os olhos deixam de ver o que estão vendo sempre, e o coração se acostuma –e esquece-o..- aquilo que se faz maravilha constante... Assim, para te amar, é melhor que te deixe.”
Já do outro lado do rio, Cecília compara argentinos e uruguaios. Empresa audaz: é opinião geral –aliás como montevideano, eu partilho dela- que só nós mesmos conhecemos nossas diferenças, que seriam digamos pouco visíveis para os não rio-platenses. Porque certamente, há uma unidade chamada “Rio da Prata”. Cecília era poeta, isto é, sabia ler o mundo nas suas entrelinhas, e estabelece esta comparação: “Direi rapidamente uma diferença que me ocorre, entre argentinos e uruguaios: nos primeiros, parece pesar o sangue espanhol; nos segundos, o português. O sangue português é lírico; o espanhol, dramático. Nós, brasileiros, não sentimos nenhuma estranheza entre a gente uruguaia; entre os argentinos sentimos uma diferença de índole. O argentino pode ser extremamente cortês; não consegue ser terno. Essa aspereza é que nos surpreende, mesmo quando lhes estamos admirando outras qualidades, que sem dúvida possuem. O argentino é facilmente anedótico, irônico, muito propenso à gargalhada –apesar da sua aparência, a primeira vista, imponente, solene, austera.” (...) E continua: “Reunião num ateliê de pintura. Penso que, no Uruguai, provavelmente não estaríamos tão bem vestidos, falaríamos de arte, recordaríamos algum episódio afetuoso, acontecido há tempos, com um amigo já morto, que teria sido bom e triste. Ficaríamos comovidos, sentiríamos o nosso parentesco de espírito, estaríamos por momentos em silêncio, como num sonho; a noite passaria levando-nos todos juntos por lugares aéreos – e chamaríamos a isto ser amigos e estar felizes.”
As citações são compridas, é verdade, mas também interessantes. A intuição da nostálgica felicidade montevideana deve resultar correta se nos lembrarmos da data da visita de Cecília. É bem provável que os montevideanos de 1944 fossem assim, nostálgicos e felizes, além de prósperos. Por outro lado, os portenhos de Cecília também devem ter mudado muito porque decididamente não são os que eu conheci há décadas e que voltei a ver em julho de 2004. Os dela são talvez os portenhos narcisistas do estereótipo. Ou será que a poeta tinha amado por demais os montevideanos e, deslumbrada pelo carinho dado e recebido, não foi capaz de avaliar os portenhos com justiça?
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Tenho há trinta anos um amigo portenho. O chamarei G., será melhor usar só sua inicial. A gente se conheceu em São Paulo, onde G. morou vários anos, nos ´70, em tempos e circunstâncias propícias para que nossa amizade fosse profunda e duradoura. G. apareceu alguns meses depois de fundado o quase mítico primeiro grupo de militância gay do Brasil, um grupo que eu também freqüentei. Por coincidência também éramos vizinhos. Morávamos no centro, ele perto do Bexiga, eu no Centro velho. Eu vivia sozinho, ele com uma amiga também militante gay.
Sinto orgulho daqueles tempos, ou saudade, não sei, ou não importa. Mas eu ficaria horas a falar daqueles rapazes mais ou menos próximos do grupo de militância “dura”. Era ditadura pesada e eles se encontravam clandestinamente. Havia entre eles poetas e ensaístas, largamente conhecidos hoje, e até um americano que é há tempo um importante brazilianist na academia dos EEUU. Um dos jovens era médico e poucos anos depois seria coordenador da campanha contra a Aids, até se tornar uma autoridade mundial, na ONU, na luta contra a doença. E também estava meu amigo G., filho de um cantor de tangos (era sina), frei de uma Ordem importante da Igreja Católica. Creio que ele não tinha chegado a fazer os votos definitivos. Suas longas confissões giravam arredor do sexo, esse tema impossível para a Igreja. –Padre, sou homossexual, preciso realizar meu desejo, o que eu faço? –Reza, meu filho, reza. O padre confessor devia saber o que dizia. Quanto a G. não sei se parou de rezar (acredito que não), mais em compensação foi embora da Ordem. Tão simples: G. queria viver. Na Argentina daqueles anos, ser homossexual não constituía só um pecado, como prática, era um delito juridicamente punível. Ao igual que seu amigo o poeta Néstor Perlongher, que também viria morar em São Paulo alguns anos depois, G. teve, digamos, um problema com a polícia de costumes, providencialmente solucionado por um deputado amigo. E G. foi-se, iniciou a aventura da liberdade sob o signo do exílio.
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Cheguei à noite na estação Retiro devidamente doutrinado durante a viagem por minha vizinha de poltrona, mulher magra, dedos finos como os de uma parca, para eu nunca tomar um táxi naquela estação: “São todos ladrões. Um deles tirou tudo que eu trazia. Agora só tomo remise quando volto de Montevidéu onde meu filho mora”. Obedeci ao conselho da parca. Gosto de ouvir falar os portenhos. Se há uma arte que quase todos dominam -e dominam várias- essa arte é a da conversa. Pedi ao motorista do remise –esse tipo de táxi mais sofisticado- que não aproveitasse o fato de eu ser forasteiro para me passear inutilmente pela cidade só para cobrar mais, que minhas economias eram poucas. “Há os integrados e há os desesperados”, respondeu, enigmático, enquanto guiava apressadamente. “Os apocalípticos?”, perguntei para ver o que acontecia. “Sim, ou você se integra ou não é ninguém”. “Bem, eu não sou ninguém”. “Eu também não”, ele disse, acho que por solidariedade. A viagem resultou curta demais para as reflexões que o motorista entabulou e as que certamente desenvolveria –e motoristas assim só existem em Buenos Aires, ao menos eu nunca tive essa sorte em Montevidéu ou em São Paulo, nem em nenhum outro lugar. Finalmente deixou-me no hotel combinado da avenida Corrientes -a rua dos cinemas e os teatros “de boulevard”. E foi quando começou a barulheira.
É preciso dizê-lo: todas as grandes cidades latino-americanas são barulhentas. São Paulo é barulhenta. México também é. Mesmo Montevidéu, que não parece uma cidade imensa (mas grande, sim), é barulhenta. O silêncio, ou talvez a impressão de silêncio encontra-se mais na Europa. Várias vezes saí do Rio de Janeiro para desembarcar em Paris, e sempre tive a impressão de um contrabando de Infernos e de Paraísos. Ás vezes deixava o Paraíso tropical e chegava no Inferno frio. Ou então chegava no Paraíso da ordem urbana, de história reconhecível, e deixava o Inferno verde, ou sua versão cinza, a Selva de pedra. Mesmo quando meu coração ficava no Brasil, e a Europa era o Inferno, aferrava-me no parco consolo do silêncio, uma esperança que em Paris só é possível para quem vier de qualquer uma das urbes latino-americanas, belas e estrondosas.
Naturalmente, a feiúra da avenida Corrientes não reside tanto nas fachadas de neon, que atordoam, porque a isso se destinam, nem na visível e geral deterioração urbana, nem no empobrecimento das classes médias que a freqüentam –e os turistas, e os ladrões, e a prostituição inevitável. (Vi que no teatro Nacional apresentavam uma comédia com a atriz Claudia Lapaccó, de quem não ouvia falar desde o tempo em que tive de ir embora de Montevidéu. Meu Deus, eu pensava, ela ainda existe? Mas, e eu? Porventura eu não existia também trinta anos atrás? Por que tanta perplexidade? Não é novidade que, à distância, o tempo é outro). O que de fato é feio e angustiante na avenida Corrientes é a falta de esperança. Eu sabia, no quinto andar do hotel onde me mandaram, que o inferno do estrépito naquela Selva de pedra não cessaria, que amanheceria e, como nos pesadelos, tudo continuaria igualmente intolerável.
A solução, óbvia, foi mudar de hotel na manhã seguinte, e reencontrar a calma já na minha segunda noite portenha, a que reina, relativa, no resto do chamado “micro-centro”. Porque com algumas exceções, o resto do centro parece ficar de costas à exacerbada Corrientes. Acabei num hotel da Avenida de Maio, avenida de noites vazias como o centro todo -casais bebendo cerveja sentados no meio-fio, turmas (barra pesada talvez) fumando maconha, trabalhadores noturnos, ou ao contrário, gente chegando na madrugada para trabalhar. Era o silêncio, modesto Paraíso.
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G. é padre numa paróquia pobre da mais pobre periferia sul de Buenos Aires. Depois que voltou para sua cidade ele me manda alguns e.mails, poucos, é verdade, com novidades, muitas. Retomou a vida religiosa ativa, teve de lutar para ser aceito, na sua idade, e com seu passado, ele diz. G. explica-se, mas não diz tudo. Escreve um documento destinado à comunidade –enviou-me há uns quatro anos-, mas ele cala sobre sua sexualidade. A vocação o levou de novo ao seio da Igreja. A angústia econômica também, ele tem um pai nonagenário e que depende dele. Voltou a Buenos Aires quando a mãe morreu, e então descobriu que é portador de hepatite C. Depois de seus anos paulistas, G. morou uma década no Recife. Ele diz que foram os anos mais felizes de sua vida, e é verdade, pelo menos em alguns carnavais eu fui testemunha dessa felicidade. Voltou. Também para fugir da sensualidade pernambucana, insiste. Seu destino era Buenos Aires, e a Igreja. Desde Montevidéu, venho guardando com cuidado o papel onde anotei as senhas dele. Quero chamá-lo e dar a ele a surpresa. G. não me espera. Ligo na mesma noite da minha chegada. Sou o homem exultante do locutório da avenida Nueve de Julio.
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Cecília querida, comigo os portenhos não foram irônicos nem incapazes de ternura nem ásperos e o aspecto deles não foi imponente nem solene nem totalmente austero. Talvez porque alguns deles conheciam minha poesia e eu fui justamente para ler poesia e falar dela. Mas é verdade que tu também foste para ler tua poesia e de poesia falar. Devem ser os tempos. Tu foste em tempos de vacas gordas, amada Cecília, e eu não sei se a opulência nos anestesia, mas sei que ela pode ser má conselheira. Ou talvez sentiste que ao sair de Montevidéu deixavas atrás uma província, um lugar lindo e periférico, e quando o navio tocou o cais portenho tu intuíste que chegavas num centro hegemônico para valer, fosse lá qual fosse seu valor. E a gente sempre simpatiza com os pequenos. Te lembro: o Conde de Lautréamont –tão Montévidéen- já sabia qual era a “Rainha do Prata” –segundo a alcunha que um tango daria a Buenos Aires. Ele diz lá perto do fim do Canto I de Les Chants de Maldoror: “Buenos-Ayres, la reine du Sud, et Montevideo, la coquette, se tendent une main amie, à travers les eaux argentines du grand estuaire”. A Montevidéu correspondeu ser “coquette”, te lembras?
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Fui recebido com generosidade por muitos poetas. Horacio Fiebelkorn, o poeta da cidade de La Plata (e que insiste em ser “de província”, ainda que more em Buenos Aires) -eu o conheci anos atrás durante umas leituras de poesia no Palácio Santos de Montevidéu- foi de uma generosidade infinita. Ofereceu-me a sua companhia quase em tempo inteiro, e a companhia de Fiebelkorn é um privilégio. Passeamos pelo Centro, mostrou-me (parte de) “todos os lugares que devem ser conhecidos por aqueles que visitam Buenos Aires” –a frase eu vi escrita na vitrine de uma agência de viagens da rua Córdoba. E houve jantares promovidos por Soledad, a mulher dele, no belo apartamento do bairro de Recoleta onde moraram até poucos meses depois de eu ir embora. Por aqueles dias estava saindo um livro dele, Zona muerta, com contracapa redigida por mim. Esperamos juntos o nascimento do livro (em vão, nasceu poucos dias depois de eu partir). Juntos, Fiebelkorn e eu lemos na Casa de la Poesía, a instituição municipal dirigida pelo poeta Daniel García Helder, homem sério e bom como a sua poesia. A Casa de la Poesía situa-se na antiga residência do poeta popular Evaristo Carriego (1883-1912), “allá por el barrio gris que cantó el pobre Carriego”, segundo dizia Borges, que tanto admirou a este poeta do subúrbio. O corajoso mas melancólico Carriego vivia numa casa pequeno-burguesa relativamente modesta de Palermo, bairro hoje elegante. Conservam-se objetos do poeta, são afrancesados, de gosto convencional, duvidoso.
Entre o público estava Daniel Samoilovich, sabidamente um poeta brilhante, mas –eu ao menos- não sabia que ele é também um homem entusiasta nem conhecia esse olhar tão doce e tão penetrante. Toda a inteligência do mundo se refugiou em seus olhos, essa “marca Samoilo” de identificação (e ele estava criando então uma ópera bufa chamada El despertar de Samoilo). Eu intuía em compensação a erudição de Samoilovich, que verifiquei no boteco depois da leitura (um conhecimento assombroso de literatura brasileira, por exemplo), nesses papos de café que antigamente eram uma tradição montevideana também, mas que em Montevidéu desapareceu porque os lugares públicos se degradaram perante a perfeita indiferença da Prefeitura.
Fiebelkorn também me acompanhou até o Centro Cultural Quinta Trabucco, em Vicente López., onde eu devia dar uma palestra. O lugar é um palacete de estilo neo-renascentista que pertenceu a uma família chamada Trabucco e surge imponente em meio de um jardim, de fato quase uma “quinta”, com árvores da flora nativa, orgulho de seu diretor, outro poeta, Rodolfo Alonso. Sem dúvida, Buenos Aires é a cidade dos psicanalistas, e vários deles estiveram presentes nas minhas leituras (são os que mais levantam a mão para perguntar –com pertinência, diga-se- e se apresentam: “Sou psicanalista”). Em Buenos Aires parece haver mais analistas que analisados, é verdade. Mas também há muitos poetas. E os que eu conheci são excelentes. Alonso é também tradutor do português, entre outras línguas. Foi o primeiro tradutor para o espanhol dos quatro heterônimos mais famosos de Fernando Pessoa, em 1960, quando Octavio Paz ainda não o(s) tinha publicado no México. Alonso vem criando uma obra poética original, de poemas breves e luminosos. E, como era de se esperar, mais uma vez acabamos a jornada papeando num café, este no elegante subúrbio de Vicente López.
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G. está alegre e desconcertado com a minha presença em Buenos Aires. Infelizmente não dá para ele encontrar-se comigo. Vir à cidade é impossível, se eu soubesse os problemas da comunidade, a pobreza, já não sabe como manter a paróquia. Como está da hepatite? Vai levando, mas se recusa a tomar medicamentos das multinacionais farmacêuticas, ele optou pela medicina alternativa. Eu? Eu continuo com meus problemas respiratórios, mesmo depois da operação. “Tivemos sorte apesar de tudo”, diz G. Mas não dá tempo para eu responder: “Tenho um passado de hedonismo”, acrescenta, em primeira pessoa. Está legal, G., meu querido G. Me ouvir falar de poesia? Não, não tem tempo nem para ler. A propósito, também não tem vida sexual, diz, tantos problemas, e além disso ele não quer, é um voto. Hoje à tarde ele teve um casamento, acha que deu bons conselhos aos noivos. Notícias do Recife? Sim, por e.mail, às vezes. Eu ligo de novo para você. Me liga, Alfredo, quero te ouvir. A gente se ver não, não, é muito difícil.
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Estou na estação Retiro, para voltar a Montevidéu e seguir depois para São Paulo. Minha vida não é estranha, Cecília? E que vida não é? Despeço-me de Buenos Aires como tu de Montevidéu. E também digo: “Quero dizer-te adeus e não posso, o ofício humano é triste, o coração se acostuma e esquece aquilo que se faz maravilha constante”. O Inferno e o Paraíso convivem tantas vezes, não é mesmo, Cecília? Para mim, Buenos Aires também era íntima, feita de destinos como o meu, bordado das parcas. Quase coquette.
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